O espírito livre da criança em Nietzsche

CAMELO, LEÃO E CRIANÇA

Liane Alves

Uma das metáforas mais poderosas sobre a condição humana e sua relação com a liberdade é a do camelo, do leão e da criança, empregada pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche no século 19 e até hoje é utilizada para demonstrar as diferentes metamorfoses da consciência e nossa possibilidade de sermos livres. Diz ele que o homem, ao nascer, é como o camelo. É obrigado a comer, assimilar e armazenar, por um bom tempo, grande parte dos dados, histórias e ensinamentos acumulados pela humanidade ao longo de séculos. Essas informações chegam a ele por meio das orientações dos pais, professores e mestres, da convivência com seus iguais ou também por toda a produção cultural existente na sociedade: livros, filmes, arte, teatro, arquitetura, todo tipo de mídia...

Ele vai ruminar, ruminar e ruminar essa quantidade enorme de dados até construir seu sistema de valores e crenças que, na maioria das vezes, já está alinhado com valores e crenças organizadas e pré-existentes - sejam elas religiões, sejam elas sistemas políticos, filosofias ou doutrinas.

A maior parte da humanidade, diz Nietzsche, vive no estado de camelo. Só assimilando, aceitando, deglutindo. Ou, pior, se estapeando por causa do conteúdo engolido, isto é, por causa de suas crenças, ideologias ou religiões. Os homens-camelos não têm potencial crítico para se afastar da própria crença, analisá-la de forma isenta e descobrir seus pontos falhos ou ângulos distorcidos. Principalmente porque ela está baseada na emoção, não na razão. Por isso, para eles, de alguma forma parece impensável e sacrílego fazer essa avaliação.

Uns poucos entre os camelos chegam ao estado de leão. Normalmente, os grandes felinos se insurgem contra isso tudo que está aí, como se dizia na década de 70. Pode ser por meio da arte, como Picasso, que subverteu os cânones dos critérios artísticos aceitos até sua época (não sem antes dominá-los muito bem, por sinal). Pode ser por meio do cinema, como Ingmar Bergman, que trouxe a conflituosa realidade psicológica do ser humano para seus filmes inovadores. Ou pode ser por meio da religião. Francisco de Assis, por exemplo, foi um extraordinário leão de seu tempo.

Leões são geralmente líderes e, por isso, têm enorme influência junto aos camelos. Por isso mesmo, muitas vezes são feitos em pedacinhos por eles ou, então, por outros leões na defesa de seu território. O problema do leão é que, na maioria dos casos, ele ainda está preso ao que ele é contra. Pode dedicar sua vida e até morrer por seu ideal. Como diz o mestre espiritual Osho, que comentou a teoria de Nietzsche no livro 'Liberdade, a Coragem de Ser Você Mesmo', a grande maioria da humanidade está empacada no estado do camelo; a minoria está empacada no estágio do leão. A maioria significa as massas; a minoria, a 'intelligentsia' (pintores, músicos, cineastas, intelectuais, escritores, uma boa parte dos pensadores...). O leão, continua Osho, evolui das massas e se faz por si mesmo. Ele é basicamente mental e egóico.

Já para se formar a criança é preciso uma formidável revolução interior. A criança é a pessoa que passou por uma transformação interna absolutamente radical. Ela tornou-se um outro ser, renasceu. É pós-mental e pós-egóica. O camelo vive no passado, o leão no futuro e criança no aqui-e-agora. Ela é a única realmente livre.

Quer saber como se tornar uma criança? Olhe, observe. Preste atenção verdadeiramente, realmente, em tudo o que está dentro e fora de você. Veja as correntes que te prendem, observe os grilhões a que está atado, as mentiras, os sonhos, as fantasias. Um encontro cara a cara com a verdade, cada dia mais profundo. E quando aprender a olhar de maneira sincera e real, tudo se esclarecerá. As correntes começarão a se desfazer, a visão estará mais límpida e desimpedida. A sensação será como a de ser uma criança; ela é criativa, leve, solta. E feliz.

Cada um vibra e ressoa à sua maneira. Não perder de vista o que o deixa vivo é uma bela placa rumo à liberdade de ser. Porque, quando se sentir energético e brilhante por dentro, manifestará o que há de mais real em você.

(Texto adaptado de artigo assinado por Liane Alves, publicado no site Vida Simples – Março/2008)

Acesso em 26 ago 2009.
http://anjodouradospbrazil.spaces.live.com/blog/cns!9C6D3A2B513DBD25!4404.entry
Foto: Nietzsche e sua irmão, Elizabeth

Voltando a ser criança

VOLTANDO A SER CRIANÇA

Rubem Alves

Será que a loucura pode ser provocada por excesso de lucidez? Douglas R. Hofstadter, no seu livro Gödel, Escher, Bach (Prêmio Pulitzer) brinca com a idéia de um computador cujo hardware não é capaz de suportar o seu software e se desintegra ao tentar executá-lo. Talvez que isso não possa acontecer com computadores mas possa acontecer com seres humanos: a estrutura física nervosa, não sendo capaz de suportar a riqueza da vida mental que nela existe, se desintegra como um vaso se quebra por não conseguir conter a exuberância da fonte. Nietzsche tornou-se insano no início do ano de 1889, vindo a morrer 11 anos depois, no dia 25 de agosto de 1900, há cem anos, portanto. Seu corpo foi frágil demais para conter sua mente imensa.

Nietzsche é o filósofo que mais amo. Dizia ele só amar os livros escritos com sangue. Seus textos são escritos com sangue, sangue sob a forma de palavras. Bem que ele poderia dizer: “Hoc est corpus meum“, isso é o meu corpo. Por isso eu o leio antropofagicamente. É impossível lê-lo e continuar o mesmo. Suas palavras não são para a cabeça; são para as entranhas. Eu o sinto circulando no meu corpo. E eu sei que isso é assim porque ao lê-lo me ponho a sorrir, sou possuído pela alegria, viro criança. O que está muito de acordo com as suas intenções.

Filósofo? “Sou um discípulo do filósofo Dionísio“, confessou no prefácio de Ecce Homo. Mas Dionísio é tudo, menos filósofo. É o deus do vinho, do êxtase, da música que se apossa do corpo inteiro, por oposição a Apolo, que se contenta com o olhar distante. Um professor da universidade de Berlin, após ler os seus textos, e sem ter entendido coisa alguma, escreveu-lhe aconselhando-o a tentar um outro estilo: ninguém leria as coisas que ele escrevia. Mas o seu estilo, precisamente, é o essencial da sua filosofia. Nietzsche desejava ser músico. Tentou ser compositor. Não conseguiu. Incapaz de fazer música com sons, fez música com palavras. O que se constitui para os filósofos acadêmicos um problema sem solução, semelhante ao da quadratura do círculo. Pode-se representar um círculo por meio de quadrados? Pode-se comunicar a música da prosa nietzscheana por meio do estilo acadêmico, que só entende a letra da linguagem, sendo surdo para a sua música? Filósofo? “Talvez eu seja apenas um bufão“, ele observou. Ele se sabia um exilado, clandestino: “Assim, para fora da minha verdade-loucura eu mergulhei... Que eu seja exilado de toda a verdade! Somente um tolo! Somente um poeta...“

Sua filosofia nasceu da doença. É ele mesmo quem diz: “Somente a minha doença me levou à razão.“ Confissão que parece dar razão aos que não conseguem digeri-lo. E concluem: “Filosofia doente, portanto“. Errado. Doença, a possibilidade da morte, nos conduz aos pensamentos essenciais. “Tenho a lucidez de quem está para morrer“, dizia Fernando Pessoa no “Tabacaria“. E Nietzsche explica: “Eis como me aparece agora aquele longo período de doença: como se eu tivesse redescoberto a vida, inclusive a mim mesmo; eu provei todas as coisas, as boas e mesmo as pequenas, de uma forma como os outros não podem facilmente provar. Transformei, então, a minha vontade de saúde, minha vontade de viver, numa filosofia.“

Nietzsche declarou que um dos seus grandes prazeres, ao lado das longas caminhadas, era a música de Schumann. Schumann era um especialista em miniaturas: “Cenas da Infância“, “Cenas da Floresta“, “Carnaval“: colagem de pequenas peças, cada uma completa em si mesma. Quem não conhece a “Träumerei“? Pois o seu estilo é igual ao de Schumann. O seu gosto pelos aforismos e textos curtos são expressão do seu horror aos sistemas que pretendem abarcar tudo. A busca de um sistema lhe parecia falta de integridade. Assim falou Zaratustra bem que poderia ter o título de “Cenas“, talvez mesmo de “Carnaval“, tendo o “monstro Dionisíaco chamado Zaratustra“ como bufão central.

Zaratustra, seu herói, é uma encarnação plástica do que ele desejava ser. Descendo das montanhas onde passara dez anos de solidão, Zaratustra se encontra com um eremita que vivia numa floresta e por quem passara dez anos antes, quando subia. O eremita se espanta: “Sim, reconheço Zaratustra“, ele diz. “Seus olhos são puros, em sua boca não se esconde nenhum desgosto. E não anda ele como um dançarino? Zaratustra mudou, Zaratustra se tornou uma criança. Zaratustra ficou iluminado.“

“Anuncio o ‘Übermensch‘“, ele proclama. “Super-homem“: traíram os tradutores. Nada mais distante do espírito de Nietzsche. Um homem “super“ é apenas um homem com suas qualidades hipertrofiadas, a mesma mediocridade tornada “super“. O “über“, em Nietzsche, corresponde ao nosso “trans“, como em transbordar. “As cisternas contém; as fontes transbordam“, dizia William Blake, o Nietzsche inglês. Nietzsche não sonhava com tamanhos; sonhava com metamorfoses: é preciso que as cisternas se transformem em fontes! A exuberância não pode ser contida. E assim traduzo eu o “Übermensch“ de Nietzsche como o “homem transbordante“. E quem é esse “homem transbordante“ que ele anuncia? Está lá, na sua curta e poética “fenomenologia do espírito“ a que ele deu o nome de “metamorfoses do espírito“. Primeiro momento: o homem é um camelo, animal reverente, que se ajoelha diante de uma vontade estranha que coloca cargas em suas costas. Sua palavra: “Obedeço“. Segundo momento, primeira metamorfose: o camelo se transforma em leão, o animal de força e vontade, cuja palavra é “Eu quero“! O leão se defronta com um dragão que tem o corpo coberto com escamas douradas. Em cada uma delas está gravado “Tu deves“. O leão luta com o dragão e o mata. Chega, finalmente, o terceiro momento, a última metamorfose, o ponto de chegada: o leão se transforma numa criança. Porque uma criança é exuberância, transbordamento de vida, brinquedo que não acaba. Mais tarde ele irá dizer que “o máximo de maturidade que um homem pode atingir é quando ele tem a seriedade que têm as crianças quando brincam“.

Suas cenas, como em Schumann, poderiam ter o nome de “Cenas da Infância“ – variações musicais sobre o tema “criança“. O que Nietzsche deseja é nos seduzir a nos tornar crianças – para brincar com ele...

(Folha de S. Paulo, Tendências e Debates, 08/2000.)

Acesso em 26 ago 2009.
http://www.rubemalves.com.br/voltandoasercrianca.htm

Sobre o Camelo, o Leão e a Criança


Em Nietzsche, Assim Falou Zaratustra

“Três transformações do espírito vos menciono: como o espírito se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança.

Há muitas coisas pesadas para o espírito, para o espírito forte e sólido, respeitável. A força deste espírito está clamando por coisas pesadas, e das mais pesadas.
Há o quer que seja pesado? – pergunta o espírito sólido. E ajoelha-se igual camelo e quer que o carreguem bem. Que há mais pesado, heróis – pergunta o espírito sólido – para eu o ditar sobre mim, para que a minha força se recreie?

Não será rebaixarmo-nos para o nosso orgulho padecer?

Deixar brilhar a nossa loucura para zombarmos da nossa sabedoria?

Ou será separarmo-nos da nossa causa quando ela festeja a sua vitória? Escalar altos montes para tentar o que nos tenta?

Ou será sustentarmo-nos com bolotas e erva do conhecimento e sofrer fome na alma por causa da verdade? Ou será estar enfermo e despedir a consoladores e travar amizade com surdos que nunca ouvem o que queremos?
Ou será nos afundar em água suja quando é a água da verdade, e não afastarmos de nós as frias rãs e os quentes sapos?

Ou será amar os que nos desprezam e estender a mão ao fantasma quando nos quer assustar?
O espírito sólido sobrecarrega-se de todas estas coisas pesadíssimas; e à semelhança do camelo que corre carregado pelo deserto, assim ele corre pelo seu deserto. No deserto mais solitário, porém, se efetua a segunda transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar a liberdade e ser senhor no seu próprio deserto.

Procura então o seu último senhor, quer ser seu inimigo e de seus dias; quer lutar pela vitória com o grande dragão.

Qual é o grande dragão a que o espírito já não quer chamar Deus, nem senhor?

“Tu deves”, assim se chama o grande dragão; mas o espírito do leão diz: “eu quero”.

O “tu deves” está postado no seu caminho, como animal escamoso de áureo fulgor; e em cada uma das suas escamas brilha em douradas letras: “Tu deves!”

Valores milenários cintilam nessas escamas, e o mais poderoso de todos os dragões fala assim: “em mim brilha o valor de todas as coisas”. “Todos os valores foram já criados, e eu sou todos os valores criados. Para o futuro não deve existir o ‘eu quero!’”. Assim falou o dragão.

Meus irmãos, que falta faz o leão no espírito? Não será suficiente a besta de carga que abdica e venera?

Criar valores novos é coisa que o leão ainda não pode; mas criar uma liberdade para a nova criação, isso pode-o o poder do leão. Para criar a liberdade e um santo NÃO, mesmo perante o dever; para isso, meus irmãos, é preciso o leão.

Conquistar o direito de criar novos valores é a mais terrível apropriação aos olhos de um espírito sólido e respeitoso. Para ele isto é uma verdadeira rapina e próprio de um animal rapace.
Como o mais santo, amou em seu tempo o “tu deves” e agora tem de ver a ilusão e arbitrariedade até no mais santo, a fim de conquistar a liberdade à custa do seu amor. É preciso um leão para esse feito…

Dizei-me, porém, irmãos: que poderá a criança fazer que não haja podido fazer o leão? Para que será preciso que o altivo leão se mude em criança?

A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação.

Sim; para o jogo da criação, meus irmãos, é necessário uma santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo quer alcançar o seu mundo. Três transformações do espírito vos mencionei: como o espírito se transformava em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança.

Assim falou Zaratustra